Ainda hoje, apesar da crescente digitalização do processo fotográfico em todos os seus níveis, grande parte dos círculos teóricos e profissionais permanece ainda paralisada pela mística do “clique”, do “momento decisivo” (Cartier-Bresson, 1981: 384-386), daquele instante mágico em que o obturador pisca, deixando a luz entrar na câmera e sensibilizar o filme.
Todo o demais, isto é, o antes e o depois do “clique”, é considerado afetação pictórica (icônica) ou “manipulação” intelectual (simbólica), fugindo portanto do âmbito do “específico” fotográfico.
Já a digitalização e o processamento posterior da foto em computador permanecem ainda largamente contestados, no plano teórico, como procedimentos que se possam incluir no âmbito da fotografia, embora, a rigor, não exista diferença alguma entre o processamento da imagem em computador e a ampliação diferenciada das partes de uma foto através do sistema de zonas.
Mas o arranjo do objeto no seu espaço natural ou no estúdio, a disposição da iluminação, a modelação da pose, os ajustes do dispositivo técnico e todo o processo de codificação que acontece antes do “clique” é tão fotografia quanto o que acontece no “momento decisivo”.
Da mesma forma, também faz parte do universo da fotografia tudo o que acontece no momento seguinte: a revelação, a ampliação, o retoque, a correção e processamento da imagem, a posterização etc.
Vejamos alguns exemplos. Podemos citar, em primeiro lugar, a obra da fotógrafa norte-americana Cindy Sherman. Pelo que se sabe, ninguém discorda da inclusão dessa obra no âmbito da fotografia. No entanto e paradoxalmente, Sherman não fotografa, ou pelo menos não é ela quem se dedica ao trabalho de espiar pelo visor da câmera, enquadrar o motivo e clicar o botão do disparador. Na verdade, ela não poderia fazer isso, porque é sempre o referente, o objeto de suas próprias fotos e não poderia estar à frente e atrás da câmera ao mesmo tempo. Quem manipula a câmera é um outro, ou vários outros, nunca nomeados. A fotógrafa transita, portanto e de forma ambígua, entre o sujeito e o objeto de suas próprias fotos. Para Sherman, fotografar consiste menos em apontar a câmera para alguma coisa pré-existente e fixar a sua imagem na película, do que em criar cenários e situações imaginárias para oferecer à câmera, como acontece no cinema de ficção A fotografia é aqui concebida como criação dramática e cenográfica, ou como mise-en-scène, onde a fotógrafa interpreta, ao mesmo tempo, os papéis de diretora, dramaturga, desenhista de cenários e atriz. |
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